sábado, 17 de dezembro de 2016

PREÇO DA FERROVIA EFSPRG : 20 MIL MORTOS

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Contestado - 100 anos depois nos campos de batalha

Primeira reportagem de série especial visita o território onde, há um século, ocorreu a Guerra do Contestado

MARCOS HOROSTECKI, FLORIANÓPOLIS 
08/04/2013


A Guerra do Contestado foi o maior conflito armado ocorrido em território brasileiro no sé­culo 20. No interior do Estado, ocupou 15 mil quilômetros qua­drados e matou 20 mil pessoas. Arevolta dos caboclos/sertane­jos catarinenes teve uma série de motivos, desde a construção da ferrovia São Paulo-Rio Gran­de do Sul, até a discussão dos li­mites de território entre Paraná e Santa Catarina.

Os caboclos, expulsos de suas terras pela companhia respon­sável pela ferrovia, travaram batalhas com o que tinham nas mãos. Seguiram líderes espiri­tuais, que prometiam terra e li­berdade.

Os combates aconteceram há 100 anos e o que restou nesses locais, na hoje conhecida como região do Contestado? As mar­cas da guerra ainda podem ser encontradas? Quem vive hoje nos antigos campos de batalha? Que histórias eles têm para con­tar? Estão preservando uma das mais ricas páginas da história brasileira?

Para responder essas pergun­tas, o Notícias do Dia foi até a re­gião e com uma série de reporta­gens, nesta semana, mostra que o povo sertanejo ainda existe, mesmo travestido de urbano e da mesma forma sonha com a terra, com a liberdade e com os ideais de fraternidade defendi­dos pelos líderes guerrilheiros.


Luiz Evangelista/ND



Mergulhe na região do contestado, 100 anos depois



Parada no tempo da guerra

O rosto do agricultor Ari Hoffmann, 41, traz as marcas do dia a dia no campo, sempre debai­xo do sol forte, tomando conta do gado para garantir o sustento da família. Perto do final do dia ele se prepara para tomar o tra­dicional chimarrão com a mu­lher, Geni, 44, e na companhia do neto, Vinícios, 3. Para eles, os dias passam lentamente, sem as atribulações da vida na cida­de grande. Na casa humilde de madeira, o silêncio é quebrado apenas pelo relinchar dos ca­valos. Ao redor dela, há novos moradores, numa distância de cerca de um quilômetro ou dois, mas no geral a paisagem pouco mudou nos últimos 100 anos. Há campos, matas, pequenas estradas de terra entrecortando as fazendas e o riacho garantin­do água para as criações. O agri­cultor nativo da região continua guerreiro, lutando pelo sustento da família, exatamente como fi­zeram avós e bisavós, que entre 1912 e 1916 pegaram em armas para defender terras e famílias e participaram do maior conflito civil da história recente do Bra­sil: a Guerra do Contestado.

CRONOLOGIA

Quando escolheu morar na comunidade de Santa Maria, em Timbó Grande, distante 35 quilômetros de Caçador, no Meio Oeste do Estado, Hoff­mann sabia muito pouco sobre o confronto, que envolveu a população mais humilde, revol­tada com a ação da companhia responsável pela construção da estrada de ferro São Paulo – Rio Grande. A empresa expulsou os moradores da faixa de domínio da ferrovia e com a ajuda das lo­comotivas explorou fortemente as florestas de pinheiros araucá­rias, que eram fartas na região. “A gente estudou um pouco e ouviu falar muita coisa. Acho que meu avô esteve na guerra, mas não sei de que lado”, co­menta. Foi em Santa Maria que os caboclos ergueram o último grande reduto ou acampamento do conflito. Eram cerca de 5 mil pessoas, incluindo mulheres e crianças, que foram massacra­das por quatro destacamentos militares, com cerca de 7 mil soldados. “Pelo lado do rio, a gente ainda encontra alguma coisa da guerra. Já recolhemos chaleiras e balas de fuzil”, co­menta Geni.


Luiz Evangelista/ND
Ari Hoffmann e o pequeno Vinícios mostram a escola que virou igreja



Da porta da casa dos Hoffmann até o último campo de batalha dos revoltosos do Contestado não é necessário percorrer mais do que 1,5 quilômetro. Ele faz questão de levar os visitantes até o local. Com o neto Vinícios nos braços, mostra a pequena escola, que hoje serve de igreja evangélica e foi erguida no local. Descendo uma ladeira, atravessando o rio por um pequeno pontilhão, está a área onde os mortos da batalha foram enterrados. É o cemitério dos jagunços, que hoje lembra uma simples pastagem. Ao lado, o proprietário das terras construiu um lago, com o objetivo de transformar o local em ponto de visitação e lazer. Todavia, a dificuldade de acesso inviabilizou o projeto. No cemitério não há uma única cruz em memória dos heróis da guerra, apenas um singelo círculo de pedra.

Foi no reduto vizinho à propriedade de Hoffmann que o sertanejo catarinense mais sofreu. Para sufocar de vez a revolta, o governo mandou quatro frentes de soldados, que sitiaram o local, impedindo a entrada de suprimentos. Até aviões, os primeiros a participarem de um combate no país, foram usados pelo Exército. A falta de provisões enfraqueceu os rebeldes. Sem sal e sem carne, eles eram obrigados a comer pequenas frutas e chegaram a lamber o próprio suor. “Mastigaram até o couro das bruacas e dos arreios dos cavalos”, diz o jornalista e escritor Paulo Ramos Derengoski, autor de três livros históricos sobre o Contestado.

Em ruínas, cemitério histórico está desaparecendo em Matos Costa

O que teriam a dizer sobre a Guerra do Contestado Emilia de Paula, morta em 1912, e Basílio Cuji, morto em 1917? Os nomes não aparecem nos livros de história e nem nas pesquisas recentes dos historiadores, mas estão visíveis nos restos de um dos mais antigos e importantes cemitérios da época do confronto, abandonado na ci­dade de Matos Costa, a 50 quilô­metros de Caçador.


Luiz Evangelista/ND
Poucas sepulturas ainda podem ser vistas no antigo cemitério



O local lembra um cenário de filme de horror. Lápides vira­das, sepulturas vazias, cruzes de madeira que se esfarelam num simples toque. Nem endereço o cemitério tem. Em respeito aos mortos da guerra, populares er­gueram no local, em 2010, se­gundo uma inscrição no cimen­to, uma cruz feita em madeira e pintada de branco. Há restos de velas ao redor do cruzeiro, que comprovam visitação recente.

O cemitério está bem à margem da SC-302, mas não é percebido por quem passa pela rodovia. A região é tomada por reflorestamentos de pinheiros americanos, que se encarregam de esconder o local. Para che­gar até as sepulturas é preciso paciência e persistência. Logo depois do último posto de com­bustíveis da cidade, a única es­trada já está tomada pelo mato. São apenas 300 metros de chão batido e pedras soltas, mas não há nenhuma indicação sobre a presença dos túmulos.

A partir da rodovia é preciso vencer o pinheiral e uma subida íngreme até os fundos do terreno. Ele está cercado por uma taipa de pedras cobertas por musgo verde e remete a uma reflexão sobre a falta de zelo do catarinense quan­to ao conflito do Contestado. O cemitério é prova concreta de que, por muitos anos, a ordem de esquecer o confronto e apagá-lo da memória da região, dada pelos coronéis e pelo próprio Exército no pós guerra, foi seguida à risca.

Material reciclado e casas ocupadas

Nas ruas da cidade de Matos Costa, a história do Contestado e do capitão do Exército Matos Costa está viva à margem da linha do trem, mas apagada da memória dos moradores. A antiga estação de passageiros ainda está de pé. Porém, o museu que trata da causa do Contestado está fechado desde a morte da única funcionária e organizadora que possuía, há cinco meses. A área que pertenceu à ferrovia permanece ocupada, inclusive as casas que foram erguidas no pós guerra, para acomodar funcionários da RFFSA (Rede Ferroviária Federal S.A.). Um dos antigos galpões de manutenção dos vagões serve de armazém para os materiais recicláveis recolhidos das ruas por Valdemir Anchau, 54. Natural do Paraná, ele pouco sabe sobre a Guerra do Contestado. “Sei apenas que foi por aqui e que tem relação com ferrovia”, explica. Orgulhoso do trabalho que faz, ele vive da reciclagem há 5 anos e está preocupado com a possibilidade de ter que deixar o local.

União para reunir os fragmentos da guerra

O catador de recicláveis lamenta que o importante papel que a cidade teve na história esteja tão esquecido. Avalia, na sua simplicidade, que os acontecimentos da guerra poderiam trazer desenvolvimento para a região, que depois do conflito viveu um período de mais de 70 anos de declínio econômico, isolada pelo fim da ferrovia e por não possuir acesso por estrada asfaltada. “Muita coisa poderia ser aproveitada para o bem de todos”, argumenta Anchau, enquanto lembra da vida dura, de sol a sol, recolhendo materiais recicláveis com o carrinho de mão. “Faço bem para a cidade recolhendo esse material. Eu poderia fazer mais se tivesse mais apoio das pessoas”, continua.

Em Matos Costa e na vizinha Calmon, o grupo Resgate tenta recolher os fragmentos das batalhas que ocorreram na região e inserir as cidades na história do país. “Se você olhar bem até hoje o caboclo, o povo mais simples dessa nossa região, ainda é discriminado”, sentencia o radialista João Batista Ferreira, coordenador do grupo. Com a ajuda de amigos e empresários locais, ele arrecada relíquias de época e divulga eventos culturais ligados ao Contestado.

Ferreira destaca o aspecto de abandono da estação ferroviária de Calmon, que poderia abrigar um museu com a história da cidade. “A ALL (concessionária responsável pela ferrovia) não permite a ocupação do local e muitas oportunidades são perdidas”, denuncia. Na estação há vidros quebrados e muita poeira. As luzes ficam acesas durante o dia.

Calmon foi uma cidade projetada pela companhia Southern Brazil Lumber & Colonization Co. Inc, de propriedade do mesmo dono da Brazil Railway Company, Percival Farquhar. Era a sede da segunda maior madeireira do grupo e de uma imobiliária, que vendia lotes tomados dos sertanejos. O local era guarnecido por um destacamento de seguranças da companhia, que na opinião de Ferreira eram “os verdadeiros jagunços”.

Em 5 de setembro de 1914 toda a vila foi queimada durante um ataque dos revoltosos chefiados por um dos líderes do movimento, Chico Alonso. Os moradores e funcionários da empresa fugiram. A empresa chegou a retomar os trabalhos no local, mas a violência do conflito teria duro impacto no desenvolvimento da região, que hoje sofre com a falta de atenção estadual e federal em termos de recursos e projetos de desenvolvimento.

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